TXT_ARTICLEs

Auto da compadecida

Auto da compadecida

A peça o Auto da Compadecida foi encenada pela primeira vez em 11 de setembro de 1956, no Teatro Santa Isabel, pelo grupo Teatro Adolescente do Recife, sob direção de Clênio Wanderley. A peça retoma elementos do teatro popular, mais especificamente dos autos medievais, e da literatura de cordel, comum na região Nordeste do país, a fim de exaltar os humildes e ridicularizar os poderosos e os religiosos que, deturpando-se moralmente, preocupam-se apenas com questões financeiras.

A obra teatral tem João Grilo e Chicó como protagonistas. Amigos inseparáveis, vivem no interior do Nordeste, vitimados, assim como outros conterrâneos, pela fome e pela miséria, aliadas à violência dos detentores do poder local. Porém, apesar desse clima inóspito, os dois amigos driblam as adversidades com inteligência e esperteza.

A história, dividida em três atos, inicia-se com a morte do cachorro de estimação da mulher do padeiro, a qual tratava o animalzinho como se fosse um ente da família, a ponto de insistir para que o padre lhe batizasse como se batiza um ser humano.

João Grilo e Chicó, funcionários do esposo da mulher dona do cão, intercederam, quando o cão ainda era vivo, junto ao padre, com o objetivo de convencê-lo a atender aos desejos da patroa. Porém, de nada adiantou o esforço dos amigos, e, para a infelicidade da mulher do padeiro, o cachorro morreu sem que recebesse a benção pelo sacramento católico.

Como não conseguiu o batismo quando o cachorro era vivo, a mulher do padeiro convence-se de que não poderia enterrar o animal sem antes fazer uma cerimônia religiosa. Mais uma vez João Grilo e Chicó tentam ajudá-la, dessa vez convencendo o padre a realizar o velório. Em conversa com o padre, João Grilo diz que o cão teria um testamento em que deixava de herança dez contos de réis para ele e três para o sacristão se o enterro fosse realizado em latim. O padre, com a possibilidade de herdar uma boa quantia, concorda com João Grilo em realizar o funeral do animal.

O bispo, porém, descobre o que se arquitetava e fica horrorizado com a possibilidade de se velar, com honras católicas, um animal. Muito esperto, João Grilo diz ao sacerdote que o testamento, na verdade, também reservava seis contos para a arquidiocese e quatro para a paróquia. A possibilidade de ganho faz com que o bispo faça vista grossa ao velório canino.

A cidade, porém, é invadida pelo perigoso bando do cangaceiro Severino, o qual mata, sem dó nem piedade, praticamente todos, dentre os quais o bispo, o padre, o sacristão, o padeiro e a mulher. João Grilo e Chicó, temendo serem as próximas vítimas do bando, dizem aos jagunços que possuem uma gaita benzida por Padrinho Padre Cícero, figura religiosa muito devotada no Nordeste, a qual seria capaz de ressuscitar os mortos.

Como demonstram interesse no objeto mágico, os dois amigos dizem que dão a gaita em troca de escaparem ilesos. Os cangaceiros, incrédulos, não acreditam no poder do objeto, mas os dois fazem uma demonstração. Assim, Chicó, com o auxílio de um saco com sangue, finge receber uma facada de João, de modo que o sangue parece ser de Chicó e este parece estar morto.

O truque, entretanto, não se sustenta por muito tempo, e João Grilo acaba morto pelos cangaceiros. No céu, todos os personagens se encontram. Na hora do juízo final, Nossa Senhora intercede por cada um dos personagens. Ironicamente, os considerados com difícil possibilidade de salvação são o padre, o bispo, o sacristão, o padeiro e a sua mulher, que seguem direto para o purgatório.

Curiosamente, os cangaceiros são mandados ao paraíso, já que, segundo a ótica de Nossa Senhora, eles eram naturalmente bons, mas foram corrompidos pelo sistema. João Grilo recebe a graça de voltar para o seu próprio corpo e, de volta à Terra, tem a possibilidade de assistir ao seu próprio enterro, feito pelo melhor amigo, Chicó. Este, por sua vez, havia prometido à Nossa Senhora que entregaria todo o dinheiro que tinha à Igreja caso seu amigo sobrevivesse. Como o milagre concretiza-se, os dois amigos fazem a devida doação prometida.

Leia o trecho a seguir da cena em que o padre e o bispo, movidos por ambição, caem na lábia do esperto João Grilo:

“PADRE: É, mas quem vai ficar engraçado sou eu, benzendo o cachorro. Benzer motor é fácil, todo mundo faz isso, mas benzer cachorro?
JOÃO GRILO: É, Chicó, o padre tem razão. Quem vai ficar engraçado é ele e uma coisa é benzer o motor do major Antônio de Morais e outra é benzer o cachorro do major Antônio de Morais. […]
BISPO: Então houve isso? Um cachorro enterrado em latim?
JOÃO GRILO: E então? É proibido? BISPO Se é proibido? Deve ser, porque é engraçado demais para não ser. É proibido! É mais do que proibido! Código Canônico, Artigo 1627, parágrafo único, letra k. Padre, o senhor vai ser suspenso [...]
JOÃO GRILO: É mesmo, é uma vergonha. Um cachorro safado daquele se atreve a deixar três contos para o sacristão, quatro para o padre e seis para o bispo, é demais. [...]
BISPO: É por isso que eu vivo dizendo que os animais também são criaturas de Deus. Que animal interessante! Que sentimento nobre!

TXT_ARTICLE No.: Read: 2195 times
Rate this TXT_ARTICLE: